terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

CRÍTICA: IRREVERSÍVEL



Direção: Gaspar Noé
Gênero: Drama
Duração: 94 min.
Ano: 2002

Ousadia e morbidez perturbadoras

Em tempos em que a banalização da violência já não choca nem assusta as pessoas, não é de se esperar que o cinema consiga facilmente utilizar este elemento – a violência – de maneira a perturbar os espectadores e, mais que isso, consagrar-se como obra relevante no cenário da sétima arte. Felizmente, há exceções, como bem demonstra o argentino Gaspar Noé, responsável por um dos filmes mais doentios, mórbidos, perversos e (o mais importante) de elevada qualidade já produzidos: “Irreversível”.
 Perverso, cruel, constrangedor, sensível, íntimo... o diretor reúne adjetivos um tanto contraditórios, mas poderosamente significativos que se inserem com perícia exemplar no longa, à medida que ele progride (ou, mais necessariamente, regride, se levarmos em conta a estrutura narrativa inversa adotada pelo realizador). A sequência de abertura, com créditos confusos, embaralhados e invertidos já fornece um prenúncio de que "Irreversível" não é um filme comum, organizado de forma tradicional, linear. As cores escuras (preto e vermelho) dos créditos também servem como aviso quanto ao conteúdo de violência e sexo estilizados - embora de forma crua e intencionalmente desagradável. Logo de início, fica evidente que o filme “é para poucos”, não apenas pela temática forte, que exige muito estômago e sangue frio, mas pela própria forma difusa de apresentar os fatos, os acontecimentos, com ritmo próprio, que acelera ou estagna nos momentos cruciais, conseguindo tal efeito pelo uso subjetivo da câmera.
De fato, as cenas se encadeiam geralmente sem cortes, assemelhando-se, às vezes, a um documentário ao vivo, onde a câmera fica parada ou sofre súbito zigue-zague para acompanhar os personagens, mudando de foco ou de cena, construindo, porém, uma identidade própria, gradativa, que se desnuda lentamente.
         Apresentando-se como uma história de vingança, de avidez por desforra, “Irreversível” mostra o quanto o desespero e a impulsividade afetam a sensatez do ser humano. A vingança alucinante do homem cuja namorada foi brutalmente violentada apresenta-se, na perspectiva genial de Noé, de maneira subjetiva e visceral, notável, por exemplo, na câmera difusa nas sequências iniciais, nos takes rápidos e apressados, no desvario do personagem que sai às cegas em busca de pistas, sem se importar com a lógica ou sequer parar para refletir.
Nesses momentos, fica clara a intenção de Noé em fazer com que o espectador se sinta na pele de Marcus (Vincent Cassel). Tudo é representado em tons sombrios, intercalados por sequências visuais chocantes, que têm seu ápice no famigerado estupro no túnel do metrô. O ambiente em si não é sombrio, mas é claustrofóbico e assustador num sentido amplamente psicológico.
Quanto à cena do estupro da personagem Alex (Monica Bellucci), esta se desenvolve, ou, antes, se arrasta por aproximadamente dez minutos que parecem intermináveis, tamanha a aflição e constrangimento conferidos pelo ato, registrado sem cortes pela câmera praticamente imóvel, como que abandonada.
Mais do que o estupro em si, a cena demonstra a opressão, o subjugo do ser humano ao perder sua dignidade, sua integridade física e moral e, por fim, o trauma realmente irreversível deixado por aquele horror. O espectador fica estupefato pela violência empregada ali e ainda por cima é forçado a acompanhar a história em retrocesso, impossibilitado de saber como aquilo terminará, mas fazendo uma depressiva volta no tempo.
A estética violenta adotada por Noé incomoda muita gente, mas longe de ser gratuita, confere ao seu filme um tom de realidade tão verossímil que justifica sua importância em plano de relevo na carreira do diretor, de Bellucci e de modo geral, no cinema dito “polêmico”.


Conceito: Excelente
Nota: 10,0