sexta-feira, 14 de novembro de 2014

CRÍTICA: TAXIDERMIA



        
Direção: György Palfi
Gênero: Drama/Comédia/Horror
Duração: 91 min.
Ano: 2006

Uma exposição literalmente visceral dos limites humanos

     Ejaculações, vômitos, defecação, sessões explícitas de evisceração e outras escatologias do gênero preenchem a história de três gerações de indivíduos cuja relação mórbida com seus próprios corpos resulta em uma obra chocante e nauseante, mas bastante enriquecedora. Assim é “Taxidermia”, filme húngaro realizado por György Pálfi. Profundamente nojento, do começo ao fim, o filme perturba o espectador ao mesmo tempo em que o brinda com um roteiro inteligente e repleto de simbolismos. Toda a nojeira que, a princípio, parece gratuita ou pornográfica (há nudez e sexo explícito sob uma perspectiva nada apetecível) possui um contexto interpretativo. Naturalmente, não é nem um pouco agradável constatar isso através da visão de um pênis ejaculando chamas, sendo bicado por uma ave, ou uma pessoa copulando com o cadáver de um porco, ou vomitando ininterruptamente e explodindo de tanto comer, ou, ainda mais bizarro, empalhando a si mesmo.
         Ainda que classificado como terror, o que se nota é um filme dramático com tendências a humor negro e com críticas mordazes ao longo de seus três atos, cada qual girando em torno da situação específica de um indivíduo e suas obsessões.
         Na primeira parte, acompanhamos Moroscovany (Csaba Czene), soldado que durante a Primeira Guerra, vivendo num vilarejo microscópico e quase abandonado, tem a sua sexualidade reprimida, tendo de recorrer ao voyeurismo e à masturbação para se aliviar dos desejos carnais. Esta parte tematiza o sexo como força instintiva do ser humano, obviamente apresentada do modo mais visceral e ‘sujo’, mostrando a bizarrice das fantasias sexuais desenfreadas e insatisfeitas, que variam da adoração à genitália feminina até a bestialidade, que encerra o ato com consequências trágicas para o protagonista.
         Justamente na transição do primeiro ao segundo ato, há um impressionante simbolismo na cena em que uma banheira ‘gira’ em 360º, resumindo a bizarrice e, de modo geral, o ciclo da vida. É uma cena extraordinariamente significativa.
         Esta segunda parte gira em torno de Kalman (Gergely Trócsányi), filho do protagonista do primeiro ato, o qual se torna um imenso obeso em grau mórbido, que participa de competições de glutonaria (ingestão de comida até o limite que o corpo humano pode suportar). A gula é o tema que aparece em primeiro plano, embora se desdobre em outros aspectos, como a “gula” por alguém, o desejo de posse ou a necessidade de absorver tudo ao alcance das mãos.
         Na terceira e última parte, a comicidade doentia dos dois primeiros atos é deixada de lado e é adotado um tom perturbador e psicologicamente bem articulado ao contar a história de Lajus (Marc Bischoff), filho de Kalman – portanto, neto de Moroscovany. Ele é um taxidermista magricela que contrasta exageradamente com o pai, que se tornou um verdadeiro monstro sedentário que mal se move e que depende do filho até para se alimentar. Lajus leva uma vida entediante e repetitiva, empalhando animais e preocupado com o perfeccionismo estético que alcança sua consagração nos momentos finais do filme, quando ele eleva sua arte tétrica ao patamar da perfeição: o corpo humano e a imortalidade.
         Esta parte funciona não apenas como desfecho para o filme, mas também como uma síntese das três gerações mostradas, evidenciando as neuroses psicológicas de seus personagens e os desastres inevitáveis que acompanham seus vícios. O roteirista Zsófia Ruttkay, inspirando-se em obras de Lajos Parti Nagy, pretende atingir o psicológico dos personagens através da exploração física de seus corpos, indo até as últimas consequências, o que invariavelmente abre um mundo de horror e certa “beleza” figurativa constante.
         Com um elenco muito coerente nas três fases, ótima fotografia e uma trilha sonora competente (sem falar na sonoplastia "natural" dos momentos de horror), "Taxidermia" promete deixar marcas. É certo, porém, que, se o filme faz bem ao cérebro em questões de filosofia ou reflexões, não se pode dizer o mesmo do estômago; os menos preparados certamente terão dificuldade de concluí-lo. Mas, ignorando-se tal sensibilidade, é uma experiência inesquecível: bizarro, insólito, original e perturbadoramente insano.



         Conceito: Ótimo
Nota: 9,0

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

CRÍTICA: ÁGUA PARA ELEFANTES






Direção: Francis Lawrence
Gênero: Drama/Romance
Duração: 120 min.
Ano: 2011

Um grande espetáculo dramático


O diretor Francis Lawrence, responsável por alguns filmes esteticamente interessantes (como “Constantine” e “Eu sou a Lenda”) traz um filme que, de certa forma, inova seu estilo, uma vez que o cineasta é mais conhecido por longas de ação ou de ritmo ‘frenético’; de fato, “Água para elefantes” é uma obra sutil, leve e que deixa de lado a ação frenética para dar espaço a um drama bem construído e visualmente deslumbrante, ancorado em um desenvolvimento muito competente, ainda que um tanto melodramático em alguns momentos.
Roteirizado por Richard LaGravenese (“P.S. Eu te amo”), o filme é baseado no best-seller de Sara Gruen e fala sobre a vida do jovem estudante de veterinária Jacob Jankowski (Robert Pattinson), que, após perder tudo bruscamente – inclusive os pais – lança-se à toa ao mundo, em busca de algum sentido para sua vida daí em diante. Acaba indo parar no trem do proprietário de um circo e sua vida muda definitivamente a partir de então.
Duas facetas do filme ficam evidentes ao longo de sua projeção: a relação de Jacob com os animais e o romance dele por Marlena (Reese Witherspoon) esposa do dono do circo, August (Christoph Waltz). Sendo veterinário, Jacob se preocupa com o bem-estar dos animais do circo, mas isso constantemente vai de encontro aos interesses de August, que se mostra dominador, violento e mais preocupado com o lucro das exibições do que com a saúde dos animais. Sobra pouco espaço para o romance de Jacob e Marlena, e isto só ocorre positivamente depois da segunda metade do filme; contudo, desde o princípio vai-se formando um vínculo entre eles, a partir do amor de ambos pelos animais, em particular a elefanta Rosie, a principal atração dos shows, e cuja história servirá de amálgama à consumação da relação dos amantes.
No quesito atuação, Robert Pattinson até convence como protagonista, demonstrando que atingiu certo grau de maturidade após o mau começo em “Crepúsculo”. Sua interpretação é contida, meio chocha, mas se encaixa no perfil introvertido do personagem; certamente poderia ter sido melhor, mas não decepciona. Reese Witherspoon se destaca tanto em atuação quanto nas performances acrobáticas da personagem Marlena. Christoph Waltz dispensa comentários e certamente é o trunfo do filme: parece ter nascido para interpretar personagens instáveis e explosivos.
Por fim, outro mérito relevante do filme, perceptível desde seu início, é, sem dúvida, a fotografia fantástica, de um visual vivo que deslumbra os olhos, particularmente por ser um drama de época. De fato, a direção fotográfica de Rodrigo Prieto , o mesmo responsável pela de "O segredo de Brokeback Mountain" ,  é impecável. Figurinos e cenários seguem a mesma estética e resultam no complemento que solidifica o filme como um verdadeiro espetáculo. Não é, para o cinema, o que diria August em relação ao circo, “o maior espetáculo da Terra”, mas encanta e compensa suas duas horas de duração.






Conceito: Ótimo
Nota: 9,0

sexta-feira, 4 de abril de 2014

CRÍTICA: TODO MUNDO QUASE MORTO



Direção: Edgar Wright
Gênero: Comédia/Terror
Duração: 99 min.
Ano: 2004

Uma obra de humor negro sofisticado

       Que George Romero é considerado o “pai dos zumbis” no cinema (ele é o responsável pelo visionário “Night of the Dead”), isto é uma opinião quase unânime entre os conhecedores do gênero terror. Que os monstros (vampiros, aliens, zumbis, lobisomens) estão em voga na mídia, mais populares e apelativos que nunca, isto também não é novidade. Em contrapartida, deixando o gênero de lado e dando uma olhada superficial sobre as produções de comédia escrachada, constatamos que o besteirol prevalece em número e em sequências mais que desnecessárias (vide o fiasco “Todo mundo em pânico”). Parece que, percebendo essas duas tendências – o terror trash e a comédia escatológica-, Edgar Wright viu o quanto seria interessante reunir esses temas distintos em uma produção que aproveitasse o “melhor” que cada um tinha a oferecer sem se tornar involuntariamente ridículo.
         O resultado dessa experiência é “Todo mundo quase morto” (Shawn of the Dead), que, apesar da versão patética do título em português, alusiva aos filmes da malfadada série “Scary Movie”, é bastante superior aos besteiróis convencionais. A princípio, “Shawn of the Dead” parece uma paródia de “Dawn of the Dead” (Madrugada dos Mortos) e até certo ponto pode ser considerado como tal; entretanto, o filme de Wright não se restringe a seguir a cartilha batida de piadas forçadas e maçantes satirizando o filme original. Isso porque Wright, diretor e roteirista, achou conveniente criar uma história própria, independente, que apenas fizesse referências genéricas aos filmes de apocalipse zumbi, em especial o mencionado “Madrugada dos Mortos”, de Zack Snyder.
         Em síntese, a história de “Todo mundo quase morto” é bastante simples e comum: conta a história de Shawn (Simon Pegg), um sujeito fracassado que leva uma vida medíocre e sem expectativas, a não ser enfrentar um emprego monótono e tentar reconquistar a namorada. Da noite para o dia, seguindo o clichê dos filmes de zumbi mais comuns, o mundo se infesta de mortos-vivos. Com a ajuda – ou, antes, com as trapalhadas - do não menos fracassado amigo (Nick Frost), Shawn se lança numa jornada de sobrevivência através da praga dos zumbis, à procura de um lugar seguro, levando na bagagem a família (mãe e padrasto) e a mulher que ama, mas que continua fazendo jogo duro devido a decepções que ele lhe causou quando estavam juntos.
         O humor do filme é construído através das falas e, mais que isso, das atitudes dos personagens ao longo desse trajeto até o “lugar seguro”, que, no caso, é um bar da pequena cidade onde vivem. Para um filme de comédia, os personagens são relativamente bem construídos, cada qual com sua importância, ainda que secundária no contexto da história, não se limitando ao papel de estereótipo. Há espaço até para a comédia romântica através das tentativas de Shawn em reaver o amor da ex-namorada.
         Naturalmente, não faltam as cenas de violência, típicas do trash zumbi, e Wright aproveita para transformar a maior parte dessas cenas em humor negro. Por fim, falando em zumbis, a caracterização deles é muito interessante, desde o modo hipnótico de andar até a maquiagem.

         Geralmente não se pode esperar muito de filmes de comédia em quesito de interpretações e roteiro, uma vez que sua função é divertir apenas naquele momento com piadas supérfluas e, por vezes, apelativas. Assim, nesse cenário batido e canhestro, “Todo mundo quase morto” configura-se como uma satisfatória exceção, sendo taxado até de comédia cult; de fato, em meio a tanta produção meia-boca, o filme de Edgar Wright apresenta certa sofisticação.


Conceito: Muito Bom
Nota: 8,0

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

CRÍTICA: IRREVERSÍVEL



Direção: Gaspar Noé
Gênero: Drama
Duração: 94 min.
Ano: 2002

Ousadia e morbidez perturbadoras

Em tempos em que a banalização da violência já não choca nem assusta as pessoas, não é de se esperar que o cinema consiga facilmente utilizar este elemento – a violência – de maneira a perturbar os espectadores e, mais que isso, consagrar-se como obra relevante no cenário da sétima arte. Felizmente, há exceções, como bem demonstra o argentino Gaspar Noé, responsável por um dos filmes mais doentios, mórbidos, perversos e (o mais importante) de elevada qualidade já produzidos: “Irreversível”.
 Perverso, cruel, constrangedor, sensível, íntimo... o diretor reúne adjetivos um tanto contraditórios, mas poderosamente significativos que se inserem com perícia exemplar no longa, à medida que ele progride (ou, mais necessariamente, regride, se levarmos em conta a estrutura narrativa inversa adotada pelo realizador). A sequência de abertura, com créditos confusos, embaralhados e invertidos já fornece um prenúncio de que "Irreversível" não é um filme comum, organizado de forma tradicional, linear. As cores escuras (preto e vermelho) dos créditos também servem como aviso quanto ao conteúdo de violência e sexo estilizados - embora de forma crua e intencionalmente desagradável. Logo de início, fica evidente que o filme “é para poucos”, não apenas pela temática forte, que exige muito estômago e sangue frio, mas pela própria forma difusa de apresentar os fatos, os acontecimentos, com ritmo próprio, que acelera ou estagna nos momentos cruciais, conseguindo tal efeito pelo uso subjetivo da câmera.
De fato, as cenas se encadeiam geralmente sem cortes, assemelhando-se, às vezes, a um documentário ao vivo, onde a câmera fica parada ou sofre súbito zigue-zague para acompanhar os personagens, mudando de foco ou de cena, construindo, porém, uma identidade própria, gradativa, que se desnuda lentamente.
         Apresentando-se como uma história de vingança, de avidez por desforra, “Irreversível” mostra o quanto o desespero e a impulsividade afetam a sensatez do ser humano. A vingança alucinante do homem cuja namorada foi brutalmente violentada apresenta-se, na perspectiva genial de Noé, de maneira subjetiva e visceral, notável, por exemplo, na câmera difusa nas sequências iniciais, nos takes rápidos e apressados, no desvario do personagem que sai às cegas em busca de pistas, sem se importar com a lógica ou sequer parar para refletir.
Nesses momentos, fica clara a intenção de Noé em fazer com que o espectador se sinta na pele de Marcus (Vincent Cassel). Tudo é representado em tons sombrios, intercalados por sequências visuais chocantes, que têm seu ápice no famigerado estupro no túnel do metrô. O ambiente em si não é sombrio, mas é claustrofóbico e assustador num sentido amplamente psicológico.
Quanto à cena do estupro da personagem Alex (Monica Bellucci), esta se desenvolve, ou, antes, se arrasta por aproximadamente dez minutos que parecem intermináveis, tamanha a aflição e constrangimento conferidos pelo ato, registrado sem cortes pela câmera praticamente imóvel, como que abandonada.
Mais do que o estupro em si, a cena demonstra a opressão, o subjugo do ser humano ao perder sua dignidade, sua integridade física e moral e, por fim, o trauma realmente irreversível deixado por aquele horror. O espectador fica estupefato pela violência empregada ali e ainda por cima é forçado a acompanhar a história em retrocesso, impossibilitado de saber como aquilo terminará, mas fazendo uma depressiva volta no tempo.
A estética violenta adotada por Noé incomoda muita gente, mas longe de ser gratuita, confere ao seu filme um tom de realidade tão verossímil que justifica sua importância em plano de relevo na carreira do diretor, de Bellucci e de modo geral, no cinema dito “polêmico”.


Conceito: Excelente
Nota: 10,0

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Crítica: Fome de Viver




Direção: Tony Scott
Gênero: Suspense/Drama
Duração: 96 min.
Ano: 1983

“Estiloso! Explícito! De tirar o fôlego!”
(Los Angeles Times)

A sofisticação de um clássico gótico sublime

No início da década de 80, época em que Anne Rice estourava no mundo apresentando uma revolução na mitologia e nas histórias de vampiros com o célebre “Entrevista com o Vampiro”, um diretor estreante assumiu a responsabilidade de levar às telas uma trama inovadora, na qual não faltavam nem a atmosfera gótica nem o erotismo mórbido e intenso tão bem explorados nas obras de Rice. Em “Fome de Viver” (The Hunger),Tony Scott – irmão do cineasta Ridley Scott – apresenta uma das obras mais cultuadas e originais do gênero, dando uma perspectiva sofisticada à temática vampiresca, já um tanto “marginalizada” em produções repetitivas ou trash.
Baseado no best-seller homônimo de Whitley Strieber, “Fome de Viver” conta a história de Mirian Blaylock (Catherine Deneuve, simplesmente perfeita no papel), uma mulher misteriosa, elegante... e imortal, que sobrevive através dos séculos com o sangue de seus amantes. Juntamente com John (David Bowie), seu atual amante, com quem aparentemente forma um casal de ricos góticos, Mirian seduz pessoas, roubando-lhes a vida e destruindo os vestígios após se alimentar. O diferencial de “Fome de Viver” começa nas próprias características dos personagens centrais: aqui, os sugadores não queimam ao sol (mas, obviamente, também não brilham diante dele), não temem alho ou crucifixos e nem são demônios irracionais; o ponto principal, porém, diz respeito à curiosa forma como se alimentam. Mirian e John não possuem presas aguçadas como os vampiros tradicionais; para matar as vítimas, utilizam pingentes em forma de ank (um símbolo egípcio) que ocultam uma pequena lâmina, com a qual cortam os pescoços das pessoas. Falando assim, haverá muitos indivíduos que estranharão essa forma de “ser vampiro”, mas é interessante notar que, no decorrer do filme, a palavra “vampiro” não é pronunciada nem uma única vez; de fato, isso é uma conclusão a que o espectador chega ao saber que eles sobrevivem com sangue humano, são imortais, gostam de roupas sóbrias e escuras – sem abrir mão da sofisticação – e preferem andar à noite.
Conforme a trama avança, John passa a sofrer os efeitos de uma raríssima doença degenerativa que provoca um envelhecimento acelerado; preocupada com ele, Mirian recorre à ajuda da Dra. Sarah Roberts (Susan Sarandon), uma médica especialista no assunto, mas os rumos tomados a partir de então são totalmente inesperados. Nasce entre elas um vínculo homoerótico que culmina em uma das cenas de sexo lésbico mais icônicas do cinema.
Combinando o complexo drama do relacionamento entre Miriam e Sarah, e unindo a isso a melancolia da imortalidade, da solidão e da morte, o filme de Tony Scott tem razões suficientes para figurar como um dos filmes mais renomados quando se fala em história gótica. Chama a atenção no filme, justamente, a forma como os elementos da cultura gótica se agregam e ajudam a tecer um conjunto de organicidade exemplar: a trilha sonora “dark”, a fotografia escurecida e sombreada, propositalmente com pouca luz, os diálogos e até os gestos e trocas de olhar, tudo possui um sentido, um porquê, embora sob uma camada sombria de contextos. O roteiro de Ivan Davis e Michael Thomas favorece o desenvolvimento da trama com a sutileza necessária para que Catherine Deneuve transmita, gradativamente, a morbidez e a consciência de que a imortalidade é mais uma tortura do que uma dádiva, o que justifica a intensidade com que ela deve aproveitar a vida efêmera dos seus amantes.
As interpretações de Susan Sarandon e de David Bowie também acrescentam visões particulares dentro do contexto do filme: Sarah, mostrando a médica segura que vê suas crenças se diluírem ao se envolver com Mirian e experimentar algo que não imaginava ser possível; John, evidenciando o sofrimento que acompanha a degradação física e moral que o acompanha a partir do momento em que passa a sofrer sua doença e refletir sobre sua relação com Mirian.
Finalmente, o clímax do filme é excepcional, unindo o drama da perda a uma cena típica de terror com direito a alguns sustos substanciais e um horror visual marcante. Mais de trinta anos após seu lançamento, “Fome de Viver” ainda se mantém em status de filme Cult e, mesmo que não siga a cartilha tradicional de vampiros monstros e nem tenha sido mais um sucesso meramente comercial, preserva a essência obscura e tétrica da psicologia vampiresca, sem ridicularizá-los com a patética apelação romântica adolescente que se tornou modismo contemporâneo.


Conceito: Excelente
Nota: 10,0

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Crítica: Deixe-me Entrar


Direção: Matt Reeves
Gênero: Suspense/Terror
Duração: 115 min.
Ano: 2010

“Espetacular!”
(The Independent)

“Excepcional!”
(Time Out)

Uma demonstração de vampirismo promissora

Nos últimos anos, temos visto a cultura pop reciclar certos temas de forma bastante apelativa, direcionando-os a um público mais jovem, ainda que isto soe predominantemente como um pleonasmo. Isto foi o que aconteceu, por exemplo, com os vampiros, que, de monstros góticos e seculares ganharam nova roupagem – nem sempre bem aceita –, tornando-se ícones adolescentes. Aproveitando essa onda de “ressurreição” dos bebedores de sangue, aliada à falta de originalidade generalizada que assola Hollywood, o diretor Matt Reeves (realizador do considerável sucesso “Cloverfield: Monstro”) apresenta mais um remake para o rol da temática vampiresca, já tão desgastada. Contudo, “Deixe-me Entrar” (Let Me In) difere agradavelmente da maioria das produções atuais do gênero ao trazer uma abordagem séria e crua ao assunto, resgatando conceitos essenciais do mesmo, ao tempo em que inova na própria estrutura e rumos da história.
“Deixe-me Entrar”, refilmagem americana do cultuado filme sueco “Lat den rätte komma in”, apresenta uma proposta ousada na narração da trama, uma vez que os protagonistas são crianças – e uma delas é vampira. A inovação do filme, entretanto, está na postura assumida: o distanciamento de infantilidades; não há pretensão de atenuar violência ou apresentar personagens rasos, por se tratar de crianças, mas, pelo contrário, determinados assuntos “adultos” são tratados com naturalidade no decorrer da projeção, sem maquiagem ou floreios visuais.
Girando em torno do garoto Owen (Kodi Smit-McPhee, em uma interpretação espetacular), a história revela seu cotidiano difícil, principalmente por sofrer humilhações e bullying na escola; uma cena em especial, em que ele passa por um terrível constrangimento no banheiro é perturbadora o bastante para o espectador notar que evidentemente não está diante de um produto típico para o público infantil.
É em um desses momentos de revolta por tais humilhações que Owen conhece Abby (Chlöe Grace Moretz, a nova Carrie), uma garota mais ou menos da idade dele, que acabou de se mudar para o apartamento ao lado de sua casa. A partir de então, desenvolve-se uma relação razoavelmente amistosa entre eles, embora Owen estranhe os mistérios em torno de Abby, como sua insensibilidade ao frio e a intolerância à comida.
Chama a atenção o contraste construído pela história ao apresentar a vampira mirim Abby: nos momentos em que está com Owen, ela é melancólica, mas afável e o filme assume, nesses momentos, contornos de romance infantil, muito inocente; entretanto, nas situações em que Abby caça e ataca para se alimentar – e, a essa altura, já está claro que ela não aprecia coelhos ou esquilos – ela é selvagem e assustadora, garantindo as cenas mais sangrentas do filme. Este contraste, esta dualidade de personalidade conforme o instante é uma das melhores sacadas da obra, pois garante um equilíbrio entre as ações da personagem, afastando-a do clichê de ser politicamente correta e dando-lhe profundidade, multidimensionalidade.
Muito se fala que o filme original de 2008 é muito superior ao remake, mas, bem avaliado, isto não corresponde tanto à realidade, primeiro porque o filme de Reeves possui uma abordagem notavelmente distinta do filme sueco. Enquanto a película de Tomas Alfredson era baseada num livro homônimo, mais concentrado no drama e na sutileza psicológica, deixando o vampirismo quase em segundo plano, o novo filme busca um ponto de equilíbrio entre esses temas, dando, porém, ênfase à ação. Isto não significa que o roteiro da refilmagem deixa a desejar; não; nesta versão, conforme mencionado, a perspectiva é diferenciada e, embora a violência gráfica e a ação com toques de suspense policial sejam os principais atrativos, os demais aspectos do longa não decepcionam o espectador.
A transposição da história de Estocolmo para Novo México preservou as características básicas do filme original no plano visual (como, por exemplo, o cenário: uma cidade fria, onde está sempre nevando), enquanto Matt Reeves demonstrou habilidade em controlar o timing do filme, dando aos personagens mirins o tempo necessário, sem pressa ou atraso no desenvolvimento da história, para que a mesma não soasse artificial ou forçada.

Em resumo, “Deixe-me Entrar” é, com certeza, um dos melhores filmes de vampiros dos últimos anos, competindo apenas, provavelmente, com seu original a cujo nível dramático não chega, mas que também não pretende alcançar dessa forma. Reeves constrói um filme com identidade própria e, se podemos dizer que remakes são desnecessários, “Let me In” prova que ao menos podem ser satisfatórios quando bem feitos. 


Conceito: Ótimo
Nota: 9,0



quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

RESENHA: Amor Pleno




“Não há o que errar. Você pode ser o que quiser.”, a frase é dita em um momento muito oportuno do mais recente filme de Terrence Malick, Amor Pleno (To The Wonder). Ao contrário da experiência surrealista de A Árvore da Vida, o longa estrelado por Ben Affleck e Olga Kurylenko vai além do imaginário. Centrado em um conteúdo realista, a produção desconstrói as relações humanas e os sentimentos mais profundos e desejosos pelo homem: amor, liberdade, fé.
Conduzido através de pequenos monólogos, a trama acompanha duas histórias paralelas, sempre com foco na relação dos personagens de Affleck e Kurylenko. A trilha sonora é um combustível crucial no longa-metragem, e retrata os mais variados sentimentos com leveza, sutileza e algumas vezes, angústia. Nada muito diferente das reflexões que vivemos diariamente. Isto porque, torna-se fácil identificar-se com o teor das escolhas realizadas ao longo dos 112 minutos apresentados.
    Relações humanas podem ser vindouras ou destrutivas, dependendo das escolhas realizadas. Ainda assim, a principal emoção extenuada no roteiro de Malick é a pura e simples carga de expectativas que depositamos no outro alguém. Característica incomum no cinema atual, fugindo do estabelecido em diálogos, lágrimas em excesso e gritos de histeria. Não. Não é preciso isso em Amor Pleno. O cineasta também imprimiu elementos autobiográficos na produção, já que morou em Paris na década de 80, onde se envolveu romanticamente, mas acabou retornando aos EUA e casando-se com uma antiga colega do colegial. O desejo de entender os sentimentos passados tornaram possível esta experiência cinematográfica ímpar.
    Entender o amor. Nunca foi fácil ou tampouco será desvendado com facilidade. Os maiores poetas da humanidade buscaram as mais variadas estrofes que lhes permitissem exemplificar em páginas o sentimento mais conhecido e ao mesmo tempo tão distante do mundo atual, mas há de reconhecer em cenas disformes, closes distantes e cortes rápidos, que não necessariamente as palavras conduzem o amor. Imagens podem, e devem ser usadas como forma de diálogo. Não por acaso, Terrence Malick carrega uma curta filmografia, mas resultante de um trabalho intenso por amor a sétima arte e a vida.

Amor Pleno é uma incessante busca ao palpável. No alcance das mãos ou dos lábios, vislumbrando o horizonte, tudo é possível. Todos somos possíveis. Escolha.

Resenha originalmente publicada no site "Mirando no Cinema" .